Revista Isto É , quarta-feira 2 de abril de 1980
A agricultura precisa mesmo é de mercado interno
Está aí a safra-monstro, gerada por uma agressiva política de apoio à agricultura e com a poderosa ajuda de São Pedro. Para o ano que vem, produção ainda maior, prometem os ministros. Será mesmo? Fala-se muito que as três safras anteriores foram fracas por causa do desestímulo ao produtor. E repete-se, a toda hora, ter sido uma vergonha o Brasil importar carne, arroz, feijão, milho, leite em pó e até óleo de soja. A história tem sido contada pela metade: é preciso dizer que, no ano passado, o Brasil até exportou, vendeu no exterior, a preço de banana (com o governo pagando uma parte do preço, isto é, subsidiando-o), algumas centenas de milhares de toneladas de arroz e milho, que tinham sobrado de grandes safras de anos anteriores. A exportação foi feita porque, com nova safra à porta, as sobras seriam gigantescas e o produtor já estava sendo mal pago. Aí veio a grande seca no Sul e Centro-Oeste, a safra de 1979 sofreu grande quebra e foi preciso importar arroz, milho e feijão. Quanto à carne, fala-se nas importações e não se fala nas exportações de carne industrializada, de dezenas de milhares de toneladas. E o óleo de soja? Vergonha é esconder a verdade: a indústria se comprometera a garantir o abastecimento do mercado interno, em 1979, e só exportar o excedente. Mas vendeu à larga e depois teve que importar, isto é, "recomprar" lá fora o óleo que exportara. Sobrou, assim, a "vergonhosa importação de leite". Também ela resultou não apenas de preços insatisfatórios, e sim do comportamento da indústria, em 1979, que se recusou a comprar toda a produção obtida pelos criadores e levou parte deles a reduzir suas atividades.
A LIÇÃO.
As importações de carne, arroz, feijão, milho, leite em pó, em resumo, não são conseqüência de más safras, e sim de boas safras que arruinaram o produtor por falta de mercado e o levaram a reduzir a produção, no ano seguinte. Hoje o governo está garantindo que compra tudo o que for colhido este ano. Mas, se a intenção é mesmo manter a produção agrícola em ascensão também no próximo ano, o que fazer da soma de "excedentes"? É preciso criar mercado, consumo interno, para a agricultura, imediatamente. Isso significa que chegou o momento de o governo melhorar a situação de milhões de pessoas que hoje vivem em condições de sub-consumo, de subnutrição no país. O primeiro passo nesse sentido seria um aumento substancial para o salário mínimo, no próximo 1º de maio. E, mais ainda: a imediata equiparação do salário mínimo em todo o país, acabando-se com a prática de estabelecer níveis mais baixos para as regiões situadas fora do eixo Rio—São Paulo. Não se alegue que as pequenas e médias empresas não poderiam suportar o impacto dessa decisão, em áreas como o Nordeste. Nessa região pode adotar-se, imediatamente, a política já longamente discutida de redução dos impostos federais para as pequenas empresas (essa medida, aliás, se enquadraria numa política de criação de empregos nas regiões subdesenvolvidas do país, já que a empresa familiar é uma fonte real de empregos). Isso aumentaria o déficit do Tesouro? Não. A economia brasileira continua infestada de subsídios, que sangram o Tesouro, nas mais diversas áreas — e em benefício só dos grandes grupos. Basta retirar os privilégios de uma delas (que tal o imoralíssimo Procap, do BNDE?).
ATÉ A DÍVIDA.
O reajuste do salário mínimo, no entanto, beneficiará apenas os trabalhadores integrados no mercado de trabalho. E os sub-empregados, os "biscateiros", os marginalizados do país? Também neste 1º de maio, pode-se parar de fingir que não há como começar a minorar sua miséria – ampliando-se, ao mesmo tempo, o mercado para alimentos, isto é, para a agricultura. Não há mais, com a grande safra, por que hesitar na implantação do "salário arroz com feijão", isto é, a distribuição de cupões para o recebimento de alimentos distribuídos gratuitamente pelo governo — ou para o pagamento de alimentos comprados no comércio. O país não tem condições de arcar com o custo de um programa desses? Tolice. O programa poderia ser implantado imediatamente apenas no Nordeste, inclusive como instrumento para combater as migrações para o Sul do país. Ele teria efeitos em duas áreas: melhora da situação das populações urbanas marginalizadas e criação de mercado para a produção agrícola regional, que também deve crescer substancialmente este ano. Isso pode ser uma verdadeira tragédia, com perda de safras, dado o baixíssimo consumo de alimentos por milhões de nordestinos. O "salário arroz com feijão", como se vê, seria uma peça importante para criar empregos no Nordeste, como política permanente, ao ampliar o mercado e aumentar a renda da agricultura regional — onde está o maior "bolsão de miséria" do país. Qual o custo desse programa? Uma ninharia. No Nordeste, segundo a PNAD (pesquisa do IBGE) de 1976, havia 255 mil famílias que viviam com até meio salário mínimo (apenas na zona urbana) e outras 610 mil com meio a um salário mínimo, além de 950 mil com um a dois salários mínimos. Se fosse concedido um quarto do salário mínimo de Cr$ 2.800,00 a essas 1,8 milhão de famílias, os gastos ficariam em torno de 1,2 bilhão de cruzeiros por mês, ou 14,4 bilhões de cruzeiros por ano. Dinheiro para comprar arroz e feijão, obrigatoriamente, com apenas uma fração (10 ou 20%?) podendo ser destinada a outros alimentos. Com isso, cairia o consumo de produtos derivados do trigo, que vêm substituindo o arroz e o feijão graças a seu preço artificialmente baixo, subsidiado pelo governo — que gastará 60 bilhões de cruzeiros este ano, nesses subsídios ao consumo. Quatro vezes mais do que o necessário para dar um pouco de arroz com feijão a 1,8 milhão de famílias do Nordeste. Com um detalhe: o país vai gastar quase 1,0 bilhão de dólares nas importações de trigo, este ano. Endividar-se para criar empregos lá fora, que o arroz com feijão podem criar aqui dentro.